domingo, 20 de dezembro de 2009

A outra vida de Catherine Millet

A outra vida de Catherine M.


(Catherine Millet)

“Senão acreditamos em predestinação, temos que admitir então que as circunstâncias de um encontro, que por comodidade atribuímos ao acaso, são, na verdade, o resultado de uma incalculável sequência de decisões tomadas em cada cruzamento de nossa vida e que, secretamente, nos levaram até ele. Não que tenhamos buscado, nem mesmo desejado, ainda que inconscientemente, todos os nossos encontros, até mesmo os mais importantes. O que acontece é que cada um de nós age como um artista ou um escritor que constrói sua obra numa sucessão de escolhas. Um gesto ou uma palavra não determina inelutavelmente o gesto ou a palavra seguinte; pelo contrário, coloca seu autor diante de uma nova escolha. Um pintor que colocou uma pincelada de vermelho pode escolher alongá-la, justapondo-lhe uma pincelada de roxo; pode escolhe fazê-la vibrar com uma pincelada roxa. No final, por mais que ele tenha trabalhado com uma certa ideia do quadro pronto na cabeça, a soma de todas as decisões tomada, sem que tenham sido previstas, fará surgir um novo resultado. É assim que vamos conduzindo nossa vida, num encadeamento de atos bem mais deliberados do que estamos prontos a admitir – porque assumir claramente toda essa responsabilidade seria um fardo muito pesado -, e que, no entanto, nos colocam no caminho de pessoas em cuja direção não pensávamos já estar nos dirigindo há tanto tempo.”

“... por esse ouvido não ser muito treinado que consegui destacar uma das raras vezes em que ele foi sensível, enquanto minha visão é muito solicitada e percebe facilmente os detalhes, às vezes aparentemente sem discernimento, que me comparo a essas pessoas que enlouquecem porque não podem separar e organizar os sinais visuais que lhe chegam do mundo exterior.”

“... Foi preciso conhecer mil para saber que com ele se tratava de uma relação ancorada num sentimento de natureza e perenidade incomparáveis a outros.”

“Que esperanças alimentamos quando o círculo familiar não tem nem as relações sociais ou sequer a capacidade de imaginar os meios que possam ajudar realizar uma ambição intelectual ou artística -...”.

“Sonhamos, esperamos o encontro extraordinário numa encruzilhada.”

... Iria me despertar do sono da multidão. Era apenas uma intuição, mas não havia dúvida de que, sendo mulher, a salvação viria de um homem certamente descobriria minhas aspirações e meus talentos (dos quais eu não duvidava!), mas que me identificaria primeiro pela minha fisionomia. De resto, os detalhes da aventura ainda me escapavam.”

“... Eu tinha traído um contrato cujo os termos nunca tinham sido estabelecidos. A regra deveria ser a liberdade, mas nenhum acordo,nem explícito nem tácito, havia definido seus limites.”

“... e só via nele um desejo de posse,um dos sentimentos primários forjados durante a primeira infância, mas que podem durar por muito tempo,eque ainda marcam vários jovens adultos.”

“Quando não pude deixar de reconhecer que um dos seus aspectos esse corpo esbarrava num limite,ou seja, não sendo a mais bonita poderia ser preterida por outra – o que eu não era tola o suficiente para ignorar...”

“ Eu não precisava de mais realidade, precisava apenas me apropriar dos signos encontrados nas revistas e no cinema.”

“A infância e a adolescência formam um longo período de sonolência durante o qual aquilo que o pensamento elabora,ainda não exerce verdadeira influência sobre a vida,pois os meios familiar e educacional freiam sua extensão;nossos gestos se tornam efetivos depois que saímos desses casulos,quanto a mim só precisei descolaras pálpebras.”

“...se tivéssemos fé,sólida e profunda – a única dificuldade seria medir a sinceridade dela -,nossos desejos seriam incondicionalmente realizados,como num passe de mágica... Enquanto acreditei em Deus, nunca duvidei de que ele me reservasse uma missão.”

 “Como meus pais brigavam muito, cabia a mim a tarefa restabelecer o amor entre eles e, além disso, de me dedicar aos outros para também conduzi-los pelos caminhos da solicitude e da compreensão; a partir daí, eu imaginava meu futuro num ambiente inteiramente pacificado. Mas essa vocação de santa era talvez apenas uma maneira entre outras de preparar uma, vida de heroína, semelhante àquelas ilustradas pelas minhas leituras profanas.”

“Mesmo quando o ser humano não acredita ou deixa de acreditar que tem de obedecer à Lei de Deus, se ele vê sua vida tornar-se idêntica ao destino impresso nas primeiras páginas do seu imaginário, não há motivos para questionar o caminho tomado por ele, muito menos para interpelar a vontade divina. Por maiores que tenham sido as dificuldades e os sofrimentos passados durante esses anos, nunca pensei em mudar de vida.

Eles participaram a tal ponto do meu equilíbrio que estou convencida, por exemplo, de que minha inaptidão para aprender a dirigir se deve a uma vontade instintiva de dedicar aos sonhos esses momentos tão perfeitamente apropriados que são os deslocamentos em transportes públicos.”

“O sonhador difrata sua vida. O mundo desenrola diante de seus olhos tantas imagens atraentes, ou perigosamente curiosas, que ele gostaria de refletir todas, e coloca-as em perspectiva, isto é,aprofunda-as e as enriquece.”

“... o sonhador prefere ser várias pessoas, viver várias vidas, muitas das quais têm a mesma consistência e a perenidade de um grão de poeira que o vento deixou por acaso na entrada da casa. Por outro lado, estamos enganados ao acreditar que aquele que devaneia se afasta do mundo, pois quase sempre suas outras vidas o colocam, pelo contrário,em empatia com ele.”

“Não é possível nenhuma identificação com uma determinada pessoa. Mesmo quando senti, com toda lucidez, um forte desejo por um homem, sem que esse desejo pudesse ser satisfeito a longo ou curto prazo, ou mesmo fosse possível, nem por isso compensei a frustração realizando-o na fantasia. A constatação é curiosa: o espaço dos meus devaneios é tão impermeável , tão radicalmente proibido a qualquer pessoa que tenha a meus olhos a mínima identidade que, embora eu pudesse acolher essa pessoa sem muita hesitação na intimidade da minha vida sexual real, se houvesse finalmente essa oportunidade, ela passaria a se excluída dos meus devaneios eróticos.”

“Então, durante anos, paralelamente a esse eixo, vivi partes de diversas outras vidas, entre as quais algumas correspondiam a relações longas e profundas. Escrevo “vidas” e não “aventuras” porque um ritmo, regras, ritos específicos caracterizaram cada uma dessas relações.”

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

O fio das Missangas - Mia Couto

“É preciso entender que os meninos estão deixando de ler os livros porque estão deixando de ler o mundo, de ser capaz de ler os outros, de ler a vida. Estão perdendo a disponibilidade de estar aberto aos demais, estar atentos às vozes, saber escutar. Há toda uma pedagogia que é preciso ser feita no conjunto. Não se pode isolar o livro e torná-lo como se fosse bandeira única desta luta. Uma coisa que aprendo na África é esta habilidade de se contar histórias e fazer com que o livro seja uma maneira de estimular, que os meninos não sejam só consumidores de história, mas também produtores de história. Quem não sabe contar uma história é pobre de alguma maneira.”







(Mia Couto, para revista ISTOÉ, sobre como estimular o gosto pela leitura.)



“Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha”



“E nem inveja eu sentiria. Mais do que o dia seguinte, eu esperava pela vida seguinte.”


“O espelho me devolve a minha antiquíssima vaidade de mulher, essa que nasceu antes de mim e a que nunca pude dar brilho.”


“Agora reparo: afinal, nem envelheci. Envelhecer é ser tomado pelo tempo, um modo de ser dono do corpo. E eu nunca amei o suficiente. Como a pedra que não espera nem é esperada, fiquei sem idade”


“A meu homem deram transfusão de sangue. Para mim, o que eu queria era transfusão de vida, o riso me entrando na veia até me engolir, cobra de sangue me conduzindo a loucura.”


“Você marido, enquanto vivo me impedia de viver. Não me vai fazer gastar mais vida, fazendo demorar. Infinita, despedida.”


“Tínhamos não camas separadas, mas sonos apartados.”


“Ninguém nota o fio que, em colar vistoso, vai compondo as “missangas”. Também assim é a voz do poeta: um fio de silêncio, costurando o tempo.” Mia Couto


“A mim, quando me deram a saia de rodar, eu me tranquei em casa. Mais que fechada, me apurei invisível, eternamente nocturna. Nasci para cozinha, pano e pranto. Ensinaram-me tanta vergonha em sentir prazer, que acabei sentindo prazer em ter vergonha.”


“No dia seguinte, as outras chegariam e me falariam do baile, das lembranças cheias de riso matreiro. E nem inveja sentiria. Mais que o dia seguinte, eu esperava ela vida seguinte.”


“Minha mãe nunca soletrou meu nome. Ela se calou no primeiro choro, tragada elo silêncio.”


“Há um rio que atravessa a casa. Esse rio, dizem, é o tempo. E as lembranças são peixes nadando ao invés da corrente. Acredito sim, por educação. Mas, não creio. Minhas lembranças são aves. A haver inundação é de céu, repleção de nuvem. Vos guio por essa nuvem, minha lembrança.”


“Há muitos sóis. Dias é que só há um.”


“A realidade é uma rasteira, feita de peso e de pés na terra.”


“Menti que sim. Afinal, mais valia um pássaro. Mesmo de fingir. Deixássemos Zuzé voar, ele já não tinha onde tombar. Neste mudo, não há pouso para aves dessas. Onde ela anda, é outro céu.”


“Que aquilo provinha de ele Ter existência limpa: lhe dava a requerida leveza. Fosse um político e, com o peso da consciência, desfechava logo de focinho. Outros se opunham: naquele estado de pelicano, o cidadão fugia de suas dívidas. Ninguém cobra no ar.


“Mas eu sabia que não. O barco estava ainda muito cru, a madeira tinha ainda vontade de raiz. Nosso tio não tinha feito um barco para flutuar. Isso fazem todos, disse, é tudo barcos, uns iguais e outros também.”


“...desde nascença o pudor adiou o amor.”


“Uma tristeza de nascença me separa do tempo.”


“Os braços se atropelavam, disputavam as magras migalhas. Em casa de pobre ser o último é ser nenhum.”


“...quando secar o rio estarei onde? E ele me respondeu : o rio vive dentro de si, o barco é que secará.”


“Só a lágrima me desnudava, só ela me enfeitava. Na lágrima flutuava a carícia desse homem que viria. Esse aprincesado me iria surpreender. E me iria amar, em plena tristeza. Esse homem me daria por fim, um nome. Para o meu apetite de nascer, tudo seria pouco, nesse momento.”

terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Mensagem indefinida e transparente de fim de ano

Se pudesse transformar o passado, certamente seria menos dura comigo. Ofereceria mais flores, distribuiria mais abraços, faria mais amigos e me permitiria mais. Esse é o começo comum de uma mensagem de fim de ano, mas, essa não é uma mensagem comum. É o depoimento explícito de alguém que se permitiu mais, amou muito, deu todos os abraços que desejou e que fez muitos amigos, conservando com carinho todos os que já faziam parte de seu mundo. Alguém que ousou sonhar e que lutou muito para que o destino não fosse uma fatalidade. Que disse o que pensava, que aprendeu a dizer, que cometeu erros, mas, que aprendeu a se perdoar. Alguém que se encontrou humana e que um dia... destituiu-se de todas as máscaras e quase deixou-se derrubar pelas circunstâncias. Alguém que nadou contra corrente e não sorriu por último, nem melhor...mas sorriu! Que distribuiu sementes em sólido e árido solo e soube esperar a chuvas para que germinassem.


Se pudesse... e posso... continuarei caminhando em direção ao desconhecido com a certeza de encontrar... bom...não faz diferença o que encontrarei. Trago a certeza interna de que a maturidade me oferecerá possibilidades e construirei o meu presente com toda a segurança que adquiri no passado. Sei que posso chorar, me decepcionar, ter desejos que nunca os realizarei e, em alguns momentos poderei até encontrar a solidão e o medo novamente, mas, nada será tão forte que me faça ver a vida sem utopias e esperanças.



Wanderlúcia Welerson Sott Meyer

Publicado no Recanto das Letras em 08/12/2009

Código do texto: T1967217