quinta-feira, 24 de junho de 2010

Antes de nascer o mundo(Mia Couto)



“Ali existíamos tão sós que nem doença sofríamos e eu acreditava que éramos imortais.”

“Ninguém é de uma raça. As raças são fardas que vestimos.”

“A família, a escola, os outros, todos elegem em nós uma centelha promissora, um território em que poderemos brilhar. Uns nasceram para cantar, outros para dançar, outros simplesmente para serem para serem outros. Eu nasci para estar calado.Minha única vocação é o silêncio. Foi meu pai que me explicou : tenho inclinação para não falar, um talento para apurar silêncios. Escrevo bem, silêncios, no plural. Sim, porque não há um silêncio. E todo silêncio é música em estado de gravidez.”

“Este é o silêncio mais bonito que já escutei até hoje(...) Ficar devidamente calado requer anos de prática. Em mim,era um dom natural, herança de algum antepassado. Talvez fosse legado de minha mãe, Dona Dordalma, quem podia ter certeza? De tão calada,ela deixara de existir e nem se notara que já não vivia entre nós, os vigentes viventes.”

“Meu pai. A voz dele era tão discreta que parecia uma outra variedade de silêncio.”

(...)  e se afastou para um recanto para se derramar em pranto.”

"O sonho é uma conversa com os mortos, uma viagem ao país das almas. Mas já não havia nem falecidos nem território das almas. O mundo tinha terminado e o seu final era um desfecho absoluto : a morte sem mortos.”

“ _ Essa casa – disse meu pai – é habitada por sombras e governada de lembranças.”

“Viver? Ora, viver era cumprir sonhos, esperar notícias.(...) a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado.”

“Quem viveu pregado a um só chão não sabe sonhar com outros lugares.”

“Se houvesse abraço de mãe teria que ter sido assim, nesse desmaio sem sentido.”

“As árvores ventadas, convertiam-se em pessoas, eram mortos que se lamentavam, a querer arrancar suas próprias raízes.”

“Esperas. É isso que a estrada traz. E são as esperas que fazem envelhecer.”

“Minha mãe morrera não porque tenha deixado de viver, mas porque havia separado o seu corpo do meu. Todo nascimento é uma exclusão, uma mutilação. Fosse vontade minha eu ainda seria parte do seu corpo, o mesmo sangue nos banharia. Diz-se “parto”. Pois seria mais acertado dizer “partida”. E eu queria corrigir aquela partida.”

“Você deve ter medo é de não saber.Depois da leitura vou lhe ensinar a escrever. (...) Um pequeno graveto rabiscava na areia do quintal e eu, deslumbrado, sentia que o mundo renascia como a savana depois das chuvas.(...) A escrita era uma ponte entre tempos passados e futuros, tempos que, em mim, nunca chegaram a existir.”

“Quanto mais decifrava as  palavras, minha mãe , nos sonhos, ganhava voz e corpo. O rio me fazia ver o outro lado do mundo. A escrita me devolvia o rosto perdido de minha mãe.”